sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Escutai em Silêncio




















Canto da estrada real - 01


A pé, alegre, sigo pela estrada real,
Saudável e livre, o mundo diante de mim,
O amplo caminho da terra morena à minha frente me conduz aonde me agrada.
Daqui por diante não interrogarei o destino, eu mesmo serei o destino.
Darei um fim às queixas de quartos cerrados, de bibliotecas de críticas plangentes,
Forte e contente, sigo pela estrada real.
A terra, e isto basta.
Não desejo que as constelações estivessem mais próximas,
Sei que elas estão muito bem onde estão,
( Até aqui trago minha antiga e venturosa carga.
Levo-os, homens e mulheres, levo-os comigo aonde quer que eu vá.
Juro que me é impossível deles me desfazer,
Eu deles me impregnei, em troca quero impregná-los).




Canto da estrada real - 05


A partir desta hora, ordeno a mim mesmo: liberta-te dos limites e das linhas imaginárias,
Irei aonde eu quiser, senhor total e absoluto de mim mesmo,
Escutarei os outros, examinarei atentamente o que dizem,
Deter-me-ei, aceitarei, meditarei,
E mansamente, mas com vontade indomável, hei de me esquivar aos compromissos que me queiram aprisionar.
Aspiro grandes golfadas de espaço.
O leste e o oeste me pertencem, o norte e o sul me pertencem
Sou maior e melhor do que eu pensava
Eu não sabia que em mim continha tantas coisas boas.
Tudo me parece admirável.
Posso sem cessar repetir aos homens e mulheres. Vós me fizestes tanto bem que eu desejaria outro tanto devolver-vos.
Quero ao largo dos caminhos absorver forças novas para mim e para vós.
Eu me dispersarei entre os homens e as mulheres do meu caminho,
Espargirei uma alegria e uma nudez nova entre eles,
Se alguém me repelir, não me perturbarei,
Quem me aceitar, ele ou ela, por mim será bendito e me abençoará.


Canto da estrada real - 15

Vamos! O caminho está aberto à nossa frente!
Ele é seguro, eu já experimentei, meus pés já o provocam cuidadosamente: que nada te retenha!
Que as folhas fiquem abertas sobre a mesa, e os livros sem abrir em seu armário!
Que os instrumentos permaneçam nas oficinas! Que o dinheiro permaneça sem ser ganho!
Que repouse a escola! Não importam os brados dos mestres!
Que o pregador pregue em sua cátedra! Que arrazoe o advogado no tribunal, e o juiz exponha a lei.
Camarada, dá-me tua mão!
Eu te dou meu afeto mais precioso que o dinheiro,
eu te dou a mim mesmo em vez de prédicas e de leis.
Queres dar-te a mim? Queres seguir comigo?
Seguiremos juntos, um ao lado do outro, enquanto durarem nossas vidas!




Tradução de Mário Ferreira dos Santos

domingo, 21 de setembro de 2008

O Ego sem poder

Deus me livre do exibicionismo, das vaidades expostas em vitrines, das falsidades e pseudo-erudições que borbulham em nossos tempos sombrios. Saí do orkut por não aguentar mais a ostentação maluca de conhecimentos sublimes e ciências elevadas, a patacoada intermitente, as discussões vazias que se presumiam grandiosas. E noto que os blogs são ameaçados pelo mesmo mal.

É fascinante acompanhar uma Bildung, claro. De fato, a acusação mais frequente àqueles que procuram fazerem-se a si mesmos é a de egoísmo. E também é certo que blogs precisam, em alguma medida, de uma perspectiva pessoal e mesmo de digressões a respeito de seus autores. O que põe tudo a perder é o desvio de foco de uma inteligência individual, que pode ser bem-humorada e culta e cujos vaticínios merecem uma leitura atenta, para uma série de virtudes inexistentes e uma personalidade falsa, embora impressionante. E quantos blogs não têm essa característica mórbida? Quantos não saem da sinceridade para entrar na auto-exaltação? Inumeráveis! Ora, se um sujeito escreve para quem quer ser engando, não deve ser lido, a menos que a enganação seja ela própria um recurso estilístico, que se torna cômico por ser conhecido. Não creio, porém, que os orkuteiros consigam manejar essas sutilezas.

sábado, 13 de setembro de 2008

Struggle for Life

O que acontece quando um liberal, liberalzão mesmo, resolve pontificar sobre os fundamentos da cultura do Ocidente?

Isso:

"O Ocidente assenta, desde há muito, a sua civilização, isto é (para evitar mal entendidos), as suas concepções societárias nucleares, na tradição, na cultura e na religiosidade cristãs. Por conseguinte, incorporou nos preceitos essenciais das suas religiões as regras morais e os procedimentos sociais fundamentais, que foram burilados e seleccionados ao longo de séculos."


sábado, 6 de setembro de 2008

Calvinismo a toda prova

Tio Carpeaux dá o leitmotiv de uma excelente discussão, no inicio dos Ensaios Reunidos:

Surge a velha desconfiança do calvinista contra o poder temporal: não existe poder temporal de direito divino; mais depressa será de direito satânico. "O mal, como mal, domina freqüentemente sobre a terra, e por muito tempo, e a doutrina verdadeiramente cristã chama Lúcifer de príncipe deste mundo." Sobretudo "todo poder é mau". "Todo poder é mau."


Creio que o modo de alinhar, ou contrariar essa proposição, é aquilo que determina mais claramente a posição política de um sujeito. A mim, ao menos, a tese referida já causou alguma insônia. Afinal, que justificativa se poderia apresentar para se rejeitar a concentração e a centralização do poder estatal, senão a afirmação que o Poder Temporal é, em si mesmo, mau? Entretanto, como conciliar (se for possível) um negócio tão extravagante com a consecução do governo ao Bem comum?

Sei lá, bicho. Mas encontrei no desafio de Calvino o incentivo para estudar ciência política seriamente.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O Tempora, o Kali Yuga!

Valiosas palavras do blogueiro português Ruy Oliveira:

"Não sou daqueles que anda para aí a clamar pela decadência da moral actual quando comparada com a de antanho. Afinal a queixa sobre a decadência dos valores vem já da Antiguidade; parece que há sempre uma saudade por um passado de ouro (verdadeiro ou mitificado...). Por isso não alinho nesse tipo de choradeiras."

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Impondo a impostura

Essa passagem de Gilson apareceu primeiro na Permanência, e dia 10 na Casa de Sarto. Mas o CtrlC, como se notará, é devido.


“Resulta daí que a situação presente dos cristãos se assemelha mais e mais à dos primeiros cristãos que lutaram por sua fé em um Império Romano cujas forças se conjuravam todas contra eles. Não estamos somente situados numa sociedade cuja alma não é mais cristã, mas cuja forma mesma não o é mais. Nem nossa moral pública se acorda com a que o Estado tolera, nem nossa moral privada com a que se pratica em torno de nós (...)
Não vivemos como os outros, porque de um país onde a pornografia faz viver tantos jornais, onde o nudismo se extravasa dos teatros para as bancas das ruas, onde os crimes mais revoltantes são cotidianamente absolvidos pelos júris dos cidadãos honestos que os julgam em sua alma e consciência, onde todas as formas de exploração industrial, comercial, bancária se expõem à luz do dia – poder-se-á dizer tudo que se queira, salvo que ele representa, mesmo aproximadamente, a imagem de uma sociedade cristã.
Mas o mais grave é que não vivendo como os outros, nós não pensamos mais como eles. Isto é o mais grave, porque de todas as rupturas é a mais profunda. A desordem moral não é privilégio de nossa época; ela existiu sempre, mesmo na Idade Média; mas então ela era considerada como uma desordem, enquanto em nossos dias pretende-se instalar como a ordem mesma. Não é o fato de sua ocorrência o que nos deve espantar; é o fato de que progressivamente ela se faz legalizar. Por outro lado, nada se lhe opõe; desde que o Estado não reconhece nenhuma autoridade espiritual acima dele, não tem outro recurso senão o de laissez-faire ou de decretar uma moral em seu proveito.”

Etienne Gilson, Pour un Ordre Catholique (cit. in «Laicismo e Universidade», A Ordem nov/50)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Aceitar as complexidades

Na arena política, só a esquerda age monoliticamente, escamoteando as semelhanças estruturais com uma multiplicidade estupenda de variações. O prório anarquismo (em sua definição clássica, o comunismo que não deu certo) termina a serviço da mesma estratégia adotada por social-democratas, extremistas e congêneres. Isso tem uma implicação interessante: esquerda é que nem filme pornô, conhecendo-se um exemplar, conhecem-se todos.

Com a direita, pensar nessa chave é suicídio. Aquele que enveredar pelo caminho das facilidades terminará imbecilizado, trêmulo diante das sutilezas que marcam e realçam cada elemento do amplo leque político conservador. Dos libertários semianarquistas aos imperialistas tradicionais, dos neocons insandecidos aos saudosos da Idade Média, dos monarquistas liberais aos liberais antimonarquistas, e destes aos monarquistas antiliberais, a variedade é deslumbrante. Não é à toa que as disputas e polêmicas sérias contra direitistas exigem uma preparação extensa. Digamos que um incauto resolva refutar o liberalismo. Terá que distinguir entre o clássico e o moderno, o progressista hayekiano e o mais propriamente conservador, o alheio a todas as religiões e o que procura reforçá-las, e por aí vai. O negócio não é brincadeira. Da mesma forma, os que acham que a monarquia é só uma estatolatria maquiada também hão de pagar mico se persistirem nesses slogans bobos.

Obviamente, é válido procurar um princípio unificador da direita, mas me parece que a coordenação de suas variedades é simplesmente impossível. Toda tentativa nesse sentido provavelmente seguirá o percurso da National Review: começará misturando descuidadamente libertários e paleocons, e terminará elegendo roqueiros.